Luca Rischbieter
Dizem que uma das maneiras de chamar a atenção dos outros é apresentar pontos de vista polêmicos, e é isso que estamos fazendo aqui ao propormos a discussão de uma idéia que pode parecer chocante para alguns, até mesmo para o próprio autor desse artigo.
1 - Não há nada de tão grave em as crianças chamarem suas professoras de “tias”.
Essa idéia, que pode arrepiar os cabelos de mais de um(a) pedagogo(a), justifica-se pela percepção de um problema muito maior:
2 - Infinitamente mais grave é o fato de crianças e adolescentes não desenvolverem nenhuma espécie de familiaridade com seus professores e professoras.
Essa é a questão que gostaríamos de discutir nesse artigo e que nos leva a uma posição polêmica, pois, afinal de contas, houve um verdadeiro combate contra o antigo hábito de dizer “tia”. Esse movimento tinha, e continua tendo, sua razão de ser: é uma luta contra uma visão excessivamente amadora da profissão de educadora.
Paulo Freire, em Professora Sim, Tia Não, expõe de forma clara as principais razões para as professoras deixarem de ser “tias”: essa visão de uma classe profissional como sendo constituída de parentes das crianças cria a expectativa de que não é preciso uma boa qualificação para fazer o trabalho de ensinar, além de uma visão política passiva e alienada, já que identificar professoras como tias “é quase como proclamar que ‘professoras’, como boas ‘tias’, não devem brigar, não devem rebelar-se, não devem fazer greve”.[1]
Essa idéia foi encampada por boa parte das escolas do país e, em muitas delas, criou-se o hábito de chamar as professoras pelo nome. Aliás, um hábito saudável que, em boas escolas, favorece a criação de relacionamentos pessoais de qualidade entre alunos(as) e professores(as), talvez até melhor do que o costume tradicional de sempre preceder os nomes por um “tia” ou “tio”.
Mas, conhecendo pessoalmente muitas escolas em que ainda existe o hábito de dizer “tia”, não acho que essa é uma diferença decisiva na determinação de qualidade do ensino. Se, em vez de Lúcia ou Maria, as crianças chamassem suas professoras de tia Lúcia ou tia Maria, esse detalhe não seria de forma alguma decisivo para definir diferenças entre duas escolas. Podemos ter boas escolas em que as crianças chamam as professoras de tias e péssimas escolas em que há o hábito de chamá-las pelo nome.
Mais grave seria a situação em que, com ou sem o “tia”, as crianças mal soubessem o nome dessas pessoas que se tornam tão importantes na vida delas.
E, pensando bem, não seria exatamente esse um dos grandes dramas da educação, especialmente da 5.ª série em diante?
O grande risco para a educação não é o de as escolas se tornarem, como as famílias, povoadas de tias, mas que aconteça o oposto: que elas sejam lugares onde as crianças mal conheçam os adultos, não tenham familiaridade com eles e não se sintam “em casa”.
Para o educador francês Raymond Fonvieille, discípulo dissidente de Freinet, a principal causa da violência e do fracasso escolar é a falta de relacionamento informal entre professores e alunos nas grandes escolas, onde há professores de mais e relacionamentos pessoais de menos:
“É nessa dispersão que engendra a irresponsabilidade, o anonimato e a indiferença, que reside o fracasso do colégio atual. Um garoto de dez ou onze anos, bem como os alunos em situação de fracasso escolar que eu atendia, antes de ter necessidade de conhecer a anatomia da rã, tem necessidade de segurança”.[2]
Aí está uma idéia simples e sensata: crianças e adolescentes que se sentem seguros vão se concentrar, pensar e aprender melhor. A insegurança e a ansiedade são as grandes inimigas da inteligência, da curiosidade, da atividade organizada e da aprendizagem. Qualquer professora de Educação Infantil sabe disso, e é por isso que existe nesse nível de ensino uma grande preocupação com a adaptação de cada criança, um processo complexo para fazer com que cada uma se sinta “em casa” — um tipo novo e diferente de lar.
Deborah Meiers, educadora e diretora de uma rede de pequenas escolas que vem alcançando resultados educativos excelentes em um bairro carente de Nova Iorque, acredita que esse caráter “familiar” da Educação Infantil não deve jamais ser esquecido e que, até mesmo ao concebermos o trabalho com adolescentes, é necessário “manter vivas as idéias e o espírito da boa educação infantil”.[3]
Mas o que caracteriza o espírito da Educação Infantil? Para ela, os princípios mais importantes são a proximidade entre adultos e crianças, a abertura de espaço para o desenvolvimento de laços entre as crianças e o uso intenso da imaginação criativa e do jogo. Meiers diz que, ao pensarmos na educação de adolescentes, os mesmos princípios deveriam ser aplicados, e é isso que ela fez em suas escolas no Harlem, Nova Iorque.
Para os dois educadores citados nos parágrafos acima, fenômenos como a criação de gangues de adolescentes estão se acentuando, pois não estamos oferecendo aos jovens a possibilidade de contatos ricos com adultos que possam servir como modelos e parceiros de diálogo nos ambientes onde há espaço para a expressão criativa e a formação de laços de amizade saudáveis.
A posição de Deborah Meiers é clara: embasada em sua experiência, ela acredita que, ao contrário do que se possa pensar, os adolescentes não tendem “naturalmente” a se isolar em grupos fechados e agressivos. Ao falar sobre as virtudes das escolas pequenas em que todos se conhecem, ela afirma:
“As evidências sugerem que a maioria dos jovens possui uma fome tão profunda pelas relações que essas escolas oferecem a eles — entre crianças e entre adultos e crianças — que eles escolhem a escola em vez das culturas alternativas na Net, na televisão e nas ruas. (...) Percebemos que a fome por conexões com os adultos é forte o suficiente para fazer uma diferença se dermos a ela uma chance”.[4]
Portanto, fenômenos como gangues somente acontecem quando não conseguimos inserir os adolescentes em uma rede de relações ricas em que adultos participam.
A solução para Meiers é clara e passa pela criação de escolas pequenas. Aliás, ao assumir a direção de uma enorme escola pública americana, seu primeiro passo foi dividi-la em várias escolas pequenas, pois “o que as grandes escolas fazem é recordar à maioria de nós que não temos muita importância”.[5]
É claro que ela está falando de enormes escolas públicas em regiões carentes e que muitas grandes escolas, por todo o planeta, são capazes de conciliar o tamanho com a criação de ambientes em que crianças e adolescentes se sintam “em casa”. Mas seu alerta é válido para todos nós em qualquer tipo de escola: um dos maiores riscos que a educação de massa corre é o de criar escolas em que há isolamento quase total entre crianças e adolescentes de um lado e adultos de outro. Nessas escolas, a falta de relacionamento empobrece todo o ambiente e acaba afetando até a aprendizagem.
Para concluir, eu ousaria afirmar que, em escolas onde as crianças e adolescentes se sentem “em casa”, os resultados educativos serão excelentes, independentemente dos métodos pedagógicos e, nesses casos, tanto faz se os(as) alunos(as) chamarem ou não as professoras de “tia”. Eu prefiro quando não chamam, se bem que, até hoje, eu chamo a maior e mais completa educadora que conheci de “tia” Vera[6]...
[1] FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho D’Água, 4 ed. 1994. p. 12.
[2] Traduzido de: FONVIEILLE, Raymond. Face à la violence: participation et creativité. Paris: PUF. 1999. p. 11.
[3] Traduzido de: MEIERS, Deborah. The power of their ideas. Boston: Beacon Press. 1995. p. 30.
[4] Traduzido de: MEIERS, Deborah. Will standards save public education?. Boston: Beacon Press. 2000. p. 23.
[5] MEIERS, Deborah. The power of their ideas. p. 30.
[6] Esse artigo é dedicado à “tia” Vera Miraglia, na passagem dos 40 anos do Colégio Anjo da Guarda, em Curitiba.
1 - Não há nada de tão grave em as crianças chamarem suas professoras de “tias”.
Essa idéia, que pode arrepiar os cabelos de mais de um(a) pedagogo(a), justifica-se pela percepção de um problema muito maior:
2 - Infinitamente mais grave é o fato de crianças e adolescentes não desenvolverem nenhuma espécie de familiaridade com seus professores e professoras.
Essa é a questão que gostaríamos de discutir nesse artigo e que nos leva a uma posição polêmica, pois, afinal de contas, houve um verdadeiro combate contra o antigo hábito de dizer “tia”. Esse movimento tinha, e continua tendo, sua razão de ser: é uma luta contra uma visão excessivamente amadora da profissão de educadora.
Paulo Freire, em Professora Sim, Tia Não, expõe de forma clara as principais razões para as professoras deixarem de ser “tias”: essa visão de uma classe profissional como sendo constituída de parentes das crianças cria a expectativa de que não é preciso uma boa qualificação para fazer o trabalho de ensinar, além de uma visão política passiva e alienada, já que identificar professoras como tias “é quase como proclamar que ‘professoras’, como boas ‘tias’, não devem brigar, não devem rebelar-se, não devem fazer greve”.[1]
Essa idéia foi encampada por boa parte das escolas do país e, em muitas delas, criou-se o hábito de chamar as professoras pelo nome. Aliás, um hábito saudável que, em boas escolas, favorece a criação de relacionamentos pessoais de qualidade entre alunos(as) e professores(as), talvez até melhor do que o costume tradicional de sempre preceder os nomes por um “tia” ou “tio”.
Mas, conhecendo pessoalmente muitas escolas em que ainda existe o hábito de dizer “tia”, não acho que essa é uma diferença decisiva na determinação de qualidade do ensino. Se, em vez de Lúcia ou Maria, as crianças chamassem suas professoras de tia Lúcia ou tia Maria, esse detalhe não seria de forma alguma decisivo para definir diferenças entre duas escolas. Podemos ter boas escolas em que as crianças chamam as professoras de tias e péssimas escolas em que há o hábito de chamá-las pelo nome.
Mais grave seria a situação em que, com ou sem o “tia”, as crianças mal soubessem o nome dessas pessoas que se tornam tão importantes na vida delas.
E, pensando bem, não seria exatamente esse um dos grandes dramas da educação, especialmente da 5.ª série em diante?
O grande risco para a educação não é o de as escolas se tornarem, como as famílias, povoadas de tias, mas que aconteça o oposto: que elas sejam lugares onde as crianças mal conheçam os adultos, não tenham familiaridade com eles e não se sintam “em casa”.
Para o educador francês Raymond Fonvieille, discípulo dissidente de Freinet, a principal causa da violência e do fracasso escolar é a falta de relacionamento informal entre professores e alunos nas grandes escolas, onde há professores de mais e relacionamentos pessoais de menos:
“É nessa dispersão que engendra a irresponsabilidade, o anonimato e a indiferença, que reside o fracasso do colégio atual. Um garoto de dez ou onze anos, bem como os alunos em situação de fracasso escolar que eu atendia, antes de ter necessidade de conhecer a anatomia da rã, tem necessidade de segurança”.[2]
Aí está uma idéia simples e sensata: crianças e adolescentes que se sentem seguros vão se concentrar, pensar e aprender melhor. A insegurança e a ansiedade são as grandes inimigas da inteligência, da curiosidade, da atividade organizada e da aprendizagem. Qualquer professora de Educação Infantil sabe disso, e é por isso que existe nesse nível de ensino uma grande preocupação com a adaptação de cada criança, um processo complexo para fazer com que cada uma se sinta “em casa” — um tipo novo e diferente de lar.
Deborah Meiers, educadora e diretora de uma rede de pequenas escolas que vem alcançando resultados educativos excelentes em um bairro carente de Nova Iorque, acredita que esse caráter “familiar” da Educação Infantil não deve jamais ser esquecido e que, até mesmo ao concebermos o trabalho com adolescentes, é necessário “manter vivas as idéias e o espírito da boa educação infantil”.[3]
Mas o que caracteriza o espírito da Educação Infantil? Para ela, os princípios mais importantes são a proximidade entre adultos e crianças, a abertura de espaço para o desenvolvimento de laços entre as crianças e o uso intenso da imaginação criativa e do jogo. Meiers diz que, ao pensarmos na educação de adolescentes, os mesmos princípios deveriam ser aplicados, e é isso que ela fez em suas escolas no Harlem, Nova Iorque.
Para os dois educadores citados nos parágrafos acima, fenômenos como a criação de gangues de adolescentes estão se acentuando, pois não estamos oferecendo aos jovens a possibilidade de contatos ricos com adultos que possam servir como modelos e parceiros de diálogo nos ambientes onde há espaço para a expressão criativa e a formação de laços de amizade saudáveis.
A posição de Deborah Meiers é clara: embasada em sua experiência, ela acredita que, ao contrário do que se possa pensar, os adolescentes não tendem “naturalmente” a se isolar em grupos fechados e agressivos. Ao falar sobre as virtudes das escolas pequenas em que todos se conhecem, ela afirma:
“As evidências sugerem que a maioria dos jovens possui uma fome tão profunda pelas relações que essas escolas oferecem a eles — entre crianças e entre adultos e crianças — que eles escolhem a escola em vez das culturas alternativas na Net, na televisão e nas ruas. (...) Percebemos que a fome por conexões com os adultos é forte o suficiente para fazer uma diferença se dermos a ela uma chance”.[4]
Portanto, fenômenos como gangues somente acontecem quando não conseguimos inserir os adolescentes em uma rede de relações ricas em que adultos participam.
A solução para Meiers é clara e passa pela criação de escolas pequenas. Aliás, ao assumir a direção de uma enorme escola pública americana, seu primeiro passo foi dividi-la em várias escolas pequenas, pois “o que as grandes escolas fazem é recordar à maioria de nós que não temos muita importância”.[5]
É claro que ela está falando de enormes escolas públicas em regiões carentes e que muitas grandes escolas, por todo o planeta, são capazes de conciliar o tamanho com a criação de ambientes em que crianças e adolescentes se sintam “em casa”. Mas seu alerta é válido para todos nós em qualquer tipo de escola: um dos maiores riscos que a educação de massa corre é o de criar escolas em que há isolamento quase total entre crianças e adolescentes de um lado e adultos de outro. Nessas escolas, a falta de relacionamento empobrece todo o ambiente e acaba afetando até a aprendizagem.
Para concluir, eu ousaria afirmar que, em escolas onde as crianças e adolescentes se sentem “em casa”, os resultados educativos serão excelentes, independentemente dos métodos pedagógicos e, nesses casos, tanto faz se os(as) alunos(as) chamarem ou não as professoras de “tia”. Eu prefiro quando não chamam, se bem que, até hoje, eu chamo a maior e mais completa educadora que conheci de “tia” Vera[6]...
[1] FREIRE, Paulo. Professora sim, tia não. São Paulo: Olho D’Água, 4 ed. 1994. p. 12.
[2] Traduzido de: FONVIEILLE, Raymond. Face à la violence: participation et creativité. Paris: PUF. 1999. p. 11.
[3] Traduzido de: MEIERS, Deborah. The power of their ideas. Boston: Beacon Press. 1995. p. 30.
[4] Traduzido de: MEIERS, Deborah. Will standards save public education?. Boston: Beacon Press. 2000. p. 23.
[5] MEIERS, Deborah. The power of their ideas. p. 30.
[6] Esse artigo é dedicado à “tia” Vera Miraglia, na passagem dos 40 anos do Colégio Anjo da Guarda, em Curitiba.
Olá paulinha. Sou educadora da rede pública em Florianópolis, trabalho numa creche com um grupo de crianças de cinco anos. Este texto trouxe a tona uma "verdade" que eu já havia superado e que agora estou a refletir novamente, sobre a questão do tratamento familiar que ainda hoje algumas famílias dispensam as educadoras no primeiro contato com a creche. Gostaria de levá-lo para reflexão das outras pessoas onde trabalho. Obrigada pela colaboração. Josélia
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